
Imaginem a cena: um som agudo corta o ar, logo seguido de um estalo seco. Não é o ruído de um cajado de pastor nem de uma simples ferramenta de campo. É o som do jogo do pau, a arte marcial portuguesa que transforma um varapau numa arma de respeito e numa extensão da vontade.
Muitos podem pensar que o jogo do pau é apenas uma prática folclórica, uma relíquia perdida no tempo. Nada mais enganador. Esta é a esgrima nacional portuguesa, um sistema de combate eficaz, refinado e com características únicas a nível mundial. É história, é cultura, é identidade.
Do Minho a Lisboa, das feiras populares aos ginásios cosmopolitas, o jogo do pau acompanhou os portugueses, evoluindo sem nunca perder a sua essência. Hoje, continua vivo e em expansão, tanto em Portugal como no estrangeiro.
Preparem-se: vamos percorrer juntos a viagem desta arte fascinante, desde as suas raízes rurais até ao seu futuro digital.
O nascimento do jogo do pau é envolto em mistério. Não há documentos antes do século XIX que digam claramente “aqui começou”. Isso só reforça uma ideia: esta é uma arte do povo, transmitida oralmente de geração em geração, longe dos livros e dos salões da nobreza.
Tudo aponta para o Norte de Portugal, sobretudo o Minho e Trás-os-Montes. Ali, o varapau era tão essencial como o pão. Servia para guiar o gado, apoiar nas caminhadas, mas também para defesa contra animais ou salteadores. Era uma arma democrática: barata, acessível e sempre à mão.
Na verdade, talvez todas tenham razão. O jogo do pau é tão português quanto universal, um produto da criatividade popular mas aberto a influências externas.
O auge do jogo do pau deu-se nas feiras e romarias do Norte.
Um insulto, uma disputa de terras, uma provocação amorosa... qualquer pretexto podia acender os ânimos. E quando isso acontecia, os varapaus falavam mais alto. O Estado pouco mandava nestas terras, e a honra resolvia-se ali mesmo.
Eram os craques do pau. Respeitados e temidos, a sua fama percorria aldeias inteiras. A glória maior era “varrer a feira”: enfrentar sozinho, ou em minoria, um grupo de adversários e sair por cima.
Não era apenas brutalidade. Era técnica, reflexo e estratégia. O jogador criava um círculo de segurança, usando movimentos largos e golpes certeiros para afastar todos os que se aproximassem.
Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro e outros escritores imortalizaram estas cenas. E não eram só lendas: o jogo do pau foi usado em guerrilhas contra os franceses, nas revoltas liberais e até em lutas políticas.
O mais curioso? Muitas expressões que usamos hoje – “andar à paulada”, “pôr-se a pau”, “porrada” – vêm diretamente destes tempos.
No final do século XIX, o jogo do pau migrou para o Sul.
Mestres famosos, como os Calado ou Joaquim Baú, viajavam pelo país ensinando a arte. Ao mesmo tempo, camponeses do Norte que iam trabalhar para Lisboa levavam consigo o gosto pelo varapau.
Na capital, já não havia lugar para rixas de feira. Foi aí que a prática se transformou em desporto.
Clube como o Ateneu Comercial de Lisboa e o Ginásio Clube Português acolheram o jogo do pau, dando-lhe novas regras, torneios e um estatuto social.
A escola lisboeta introduziu novidades, como os golpes a uma só mão e os famosos “cortes”, defesas ativas que interceptavam os ataques. Uma prova de que a tradição também sabe inovar.
No século XX, o jogo do pau quase desapareceu.
As pistolas tornaram o treino do varapau obsoleto. Além disso, o Estado Novo proibiu os varapaus em feiras para evitar desordens. Sem palco natural, a prática entrou em decadência.
Com a emigração e a urbanização, as aldeias esvaziaram-se e a transmissão mestre-aprendiz quase quebrou. Nos anos 60 e 70, apenas alguns velhos mestres mantinham viva a chama.
Quando parecia condenado, o jogo do pau renasceu graças a figuras-chave.
Nos anos 70, fundou a primeira associação dedicada ao jogo do pau. Percebeu que era preciso dar-lhe estrutura e reconhecimento oficial.
Viajou pelo país para recolher técnicas de escolas quase extintas. Criou a Escola de Esgrima Lusitana do Santo Condestável e organizou o primeiro Torneio Nacional em 1986. Nesse mesmo ano, levou uma equipa ao Mundial de Artes Marciais em França: Portugal ganhou tudo.
Graças a estes mestres, o jogo do pau não só sobreviveu, como se modernizou.
O jogo do pau é muito mais do que pancadas. É uma gramática complexa de ataques, defesas e estratégias.
Os paus eram tratados com azeite ou cinza para ficarem mais elásticos e duradouros.
Termos como cobertas (defesas), pancadas (ataques), varrimentas (movimentos circulares) e cortes mostram a sofisticação desta esgrima popular.
Ainda se joga em Fafe, Bucos, Lisboa, Cascais, Algarve e até nos Açores. Cada escola mantém a sua identidade: umas mais tradicionais, outras mais desportivas ou viradas para a defesa pessoal.
Existem grupos ativos na Suécia, França, EUA, Austrália e Bélgica. O varapau português já fala várias línguas!
Para garantir segurança, hoje usa-se equipamento de proteção e varapaus de materiais adaptados. Há torneios nacionais e demonstrações em escolas e universidades.
Se for bem promovido, o jogo do pau pode conquistar o respeito internacional e, em contrapartida, ganhar nova vida em Portugal.
O jogo do pau é muito mais do que uma técnica de luta. É a história viva de Portugal.
Nasceu do instinto de sobrevivência, cresceu como símbolo de honra, transformou-se em desporto e sobreviveu graças à paixão de mestres dedicados. Hoje, é património cultural e pode ser também uma das chaves para afirmar a identidade portuguesa no mundo.
Da próxima vez que ouvirem falar de um simples pau, lembrem-se: dentro dele cabe a alma guerreira de uma nação inteira.