Jogo do Pau - A Arte Marcial Portuguesa
Por Helder Gandra - Obra do próprio, CC BY-SA 4.0, Hiperligação

Jogo do Pau: A Alma Guerreira de Portugal

Setembro 24, 2025

Introdução – Mais do que um Pau, uma Herança de Ferro e Madeira

Imaginem a cena: um som agudo corta o ar, logo seguido de um estalo seco. Não é o ruído de um cajado de pastor nem de uma simples ferramenta de campo. É o som do jogo do pau, a arte marcial portuguesa que transforma um varapau numa arma de respeito e numa extensão da vontade.

Muitos podem pensar que o jogo do pau é apenas uma prática folclórica, uma relíquia perdida no tempo. Nada mais enganador. Esta é a esgrima nacional portuguesa, um sistema de combate eficaz, refinado e com características únicas a nível mundial. É história, é cultura, é identidade.

Do Minho a Lisboa, das feiras populares aos ginásios cosmopolitas, o jogo do pau acompanhou os portugueses, evoluindo sem nunca perder a sua essência. Hoje, continua vivo e em expansão, tanto em Portugal como no estrangeiro.

Preparem-se: vamos percorrer juntos a viagem desta arte fascinante, desde as suas raízes rurais até ao seu futuro digital.


As Raízes do Jogo do Pau – Entre o Mistério e a Tradição

O nascimento do jogo do pau é envolto em mistério. Não há documentos antes do século XIX que digam claramente “aqui começou”. Isso só reforça uma ideia: esta é uma arte do povo, transmitida oralmente de geração em geração, longe dos livros e dos salões da nobreza.

O Berço Nortenho

Tudo aponta para o Norte de Portugal, sobretudo o Minho e Trás-os-Montes. Ali, o varapau era tão essencial como o pão. Servia para guiar o gado, apoiar nas caminhadas, mas também para defesa contra animais ou salteadores. Era uma arma democrática: barata, acessível e sempre à mão.

Teorias para Todos os Gostos

  • Teoria Rural – O jogo do pau teria nascido de forma natural, quando camponeses e pastores começaram a usar o cajado para se defender. Com o tempo, os gestos de sobrevivência ganharam técnica e estilo.
  • Teoria Militar – Há quem defenda que a arte é um eco das técnicas de armas medievais, como o montante. Até D. Duarte descreveu manobras muito semelhantes.
  • Teoria Celta – Alguns estudiosos apontam para uma herança celta, ligando o jogo do pau aos Pauliteiros de Miranda e a outras tradições guerreiras do Norte.
  • Teoria Oriental – A mais exótica sugere que a técnica possa ter sido influenciada por artes marciais indianas trazidas nos Descobrimentos.

Na verdade, talvez todas tenham razão. O jogo do pau é tão português quanto universal, um produto da criatividade popular mas aberto a influências externas.


“Varrer a Feira” – Honra, Varapaus e Rixas

O auge do jogo do pau deu-se nas feiras e romarias do Norte.

Quando a Feira Virava Campo de Batalha

Um insulto, uma disputa de terras, uma provocação amorosa... qualquer pretexto podia acender os ânimos. E quando isso acontecia, os varapaus falavam mais alto. O Estado pouco mandava nestas terras, e a honra resolvia-se ali mesmo.

Os “Puxadores”

Eram os craques do pau. Respeitados e temidos, a sua fama percorria aldeias inteiras. A glória maior era “varrer a feira”: enfrentar sozinho, ou em minoria, um grupo de adversários e sair por cima.

Não era apenas brutalidade. Era técnica, reflexo e estratégia. O jogador criava um círculo de segurança, usando movimentos largos e golpes certeiros para afastar todos os que se aproximassem.

Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro e outros escritores imortalizaram estas cenas. E não eram só lendas: o jogo do pau foi usado em guerrilhas contra os franceses, nas revoltas liberais e até em lutas políticas.

O mais curioso? Muitas expressões que usamos hoje – “andar à paulada”, “pôr-se a pau”, “porrada” – vêm diretamente destes tempos.


Do Norte para Lisboa – De Combate a Desporto

No final do século XIX, o jogo do pau migrou para o Sul.

Mestres Itinerantes e Migrantes

Mestres famosos, como os Calado ou Joaquim Baú, viajavam pelo país ensinando a arte. Ao mesmo tempo, camponeses do Norte que iam trabalhar para Lisboa levavam consigo o gosto pelo varapau.

Nasce o Jogo-Desporto

Na capital, já não havia lugar para rixas de feira. Foi aí que a prática se transformou em desporto.

  • Jogo-Combate – o estilo do Norte, rude e realista.
  • Jogo-Desporto – nascido em Lisboa, mais técnico, geométrico e exibicional.

Clube como o Ateneu Comercial de Lisboa e o Ginásio Clube Português acolheram o jogo do pau, dando-lhe novas regras, torneios e um estatuto social.

Inovação Técnica

A escola lisboeta introduziu novidades, como os golpes a uma só mão e os famosos “cortes”, defesas ativas que interceptavam os ataques. Uma prova de que a tradição também sabe inovar.


O Declínio – Quando o Pau Perdeu Força

No século XX, o jogo do pau quase desapareceu.

Armas de Fogo e Estado Novo

As pistolas tornaram o treino do varapau obsoleto. Além disso, o Estado Novo proibiu os varapaus em feiras para evitar desordens. Sem palco natural, a prática entrou em decadência.

Emigração e Esquecimento

Com a emigração e a urbanização, as aldeias esvaziaram-se e a transmissão mestre-aprendiz quase quebrou. Nos anos 60 e 70, apenas alguns velhos mestres mantinham viva a chama.


O Renascimento – Mestres Visionários

Quando parecia condenado, o jogo do pau renasceu graças a figuras-chave.

Mestre Pedro Ferreira

Nos anos 70, fundou a primeira associação dedicada ao jogo do pau. Percebeu que era preciso dar-lhe estrutura e reconhecimento oficial.

Mestre Nuno Russo

Viajou pelo país para recolher técnicas de escolas quase extintas. Criou a Escola de Esgrima Lusitana do Santo Condestável e organizou o primeiro Torneio Nacional em 1986. Nesse mesmo ano, levou uma equipa ao Mundial de Artes Marciais em França: Portugal ganhou tudo.

Graças a estes mestres, o jogo do pau não só sobreviveu, como se modernizou.


A Técnica – Segredos do Varapau

O jogo do pau é muito mais do que pancadas. É uma gramática complexa de ataques, defesas e estratégias.

O Varapau Ideal

  • Lodão – leve e flexível.
  • Marmeleiro – duríssimo, “ou vai ou racha”.
  • Freixo – resistente.
  • Castanheiro – mais comum, mas menos robusto.

Os paus eram tratados com azeite ou cinza para ficarem mais elásticos e duradouros.

Métodos de Treino

  • Sarilhos, Formas e Séries – sequências de movimentos para praticar ataques e defesas.
  • Jogo da Cruz – exercício em que o praticante se defende de quatro direções ao mesmo tempo, simulando uma “varredela”.

Vocabulário Rico

Termos como cobertas (defesas), pancadas (ataques), varrimentas (movimentos circulares) e cortes mostram a sofisticação desta esgrima popular.


O Jogo do Pau Hoje – Do Minho ao Mundo

Em Portugal

Ainda se joga em Fafe, Bucos, Lisboa, Cascais, Algarve e até nos Açores. Cada escola mantém a sua identidade: umas mais tradicionais, outras mais desportivas ou viradas para a defesa pessoal.

No Estrangeiro

Existem grupos ativos na Suécia, França, EUA, Austrália e Bélgica. O varapau português já fala várias línguas!

A Competição Moderna

Para garantir segurança, hoje usa-se equipamento de proteção e varapaus de materiais adaptados. Há torneios nacionais e demonstrações em escolas e universidades.


O Futuro do Jogo do Pau – Entre Desafios e Oportunidades

Obstáculos

  • Falta de visibilidade mediática.
  • Tendência portuguesa para valorizar mais as artes marciais estrangeiras.
  • Atração dos jovens por modalidades globais como o judo ou o karaté.

Oportunidades

  • O movimento HEMA (Historical European Martial Arts) valoriza tradições como a portuguesa. O jogo do pau é único por ter uma linhagem viva, ao contrário de muitas artes reconstruídas de manuais antigos.
  • O digital pode ser aliado: vídeos no YouTube, conteúdos no Instagram e transmissões ao vivo podem levar esta arte ao mundo inteiro.

Se for bem promovido, o jogo do pau pode conquistar o respeito internacional e, em contrapartida, ganhar nova vida em Portugal.


Conclusão – A Força de um Pau, a Força de um Povo

O jogo do pau é muito mais do que uma técnica de luta. É a história viva de Portugal.

Nasceu do instinto de sobrevivência, cresceu como símbolo de honra, transformou-se em desporto e sobreviveu graças à paixão de mestres dedicados. Hoje, é património cultural e pode ser também uma das chaves para afirmar a identidade portuguesa no mundo.

Da próxima vez que ouvirem falar de um simples pau, lembrem-se: dentro dele cabe a alma guerreira de uma nação inteira.

Roteiros

Relatos

Conhecer Portugal
Conhecer Portugal
pelos caminhos...
Política de Privacidade